quarta-feira, 13 de agosto de 2014

pura ficção #3

"Existe um tempo para tudo. Era o que me costumavas dizer naquelas manhãs em que eu te batia à porta com a lágrima ao olho e te pedia, soluçando, que me ajudasses. Era só isso que te pedia. Isso e um abraço, daqueles que só um avô era capaz de dar. E tu davas. Davas e sorrias. Isso bastava.
Existe um tempo para tudo. Era o que me dirias hoje quando eu entrasse pela tua porta e te dissesse que não vou ser capaz de enfrentar a tua partida, que não vou ser capaz de passar pelo café, antes de ir para a escola, e não te ver lá para me dares um beijo e me dizeres 'Bom dia'. 
Existe um tempo para tudo. Existe um tempo para tudo. Existe um tempo para tudo. Existe um tempo para tudo. Existe...
Mas não agora. Agora quero apenas que o tempo não passe, que o chão desta casa não gele perante a tua ausência e que eu possa continuar deitada nele, enquanto te ouço contar as histórias de quando eras novo, de como conquistaste a avó, de como viste o pai correr pelos prados, das noites que passaste sozinho pela avó ter outros, das vezes em que só tu eras capaz de me acalmar... Quero que contes, avô. Quero que contes tudo, tantas e tantas vezes. Quero que estejas aqui, agora.
O pai não sai do quarto, a mãe saiu e ainda não voltou e a avó nem foi capaz de dizer nada. Tenho tanta pena que não tenhas sido feliz com ela. Mas eu sei, eu sei que foste feliz comigo. Naquelas tardes de inverno enquanto me ensinavas a jogar xadrez e me dizias que esse era um jogo de paciência e estratégia. Sabias que eu era péssima no jogo, eu também o sabia, mas deixavas-me ganhar para depois me poderes pagar o gelado que me tinhas prometido. Naquelas manhãs de verão que saíamos os dois, com o guarda-sol e a lancheira prontos para passar uma tarde no jardim de casa. Era a nossa praia: um jardim, uma manta, uma sandes e um livro. Eu amava esses dias!
Lembraste do livro da bisavó? Trouxe-o comigo até hoje, e até sempre. Tem o cheiro dela, e o teu, e o do pai e espero um dia ter o meu e o do meu filho. Terá, prometo.
Tenho tanta pena avô, que não estejas aqui. 
O chão da casa começou a gelar, mas eu não me importo. É onde me sinto melhor. 
O pai não deve saber onde estou e a mãe não deve ter tempo para pensar nisso. Eras o paizinho dela, sabias? Ela amava-te como um pai. Lembraste daquela vez em que a resgataste do rio com a ajuda do pai? Ela diz que foi nesse momento em que se apaixonou por vocês os dois. Era impossível tal não acontecer. Vocês são tão lindos.
Tenho medo avô. Tenho medo de um dia esquecer a tua cara, tenho medo de um dia não me lembrar da tua voz. Tenho medo de esquecer o teu abraço, o teu carinho, a tua presença. Tenho medo de um dia não saber distinguir o teu cheiro no meio da multidão. Tenho medo de te perder na multidão.
Ah, já me esquecia, o Doc está aqui ao meu lado. Se soubesses o quanto ele chora, o quanto ele se aninha em mim e me pede mimos. Ele está a tremer, não sei se de frio se de saudade. Talvez de tudo.
Nada disto faz sentido, avô. Ainda ontem estavas sentado naquela cadeira, que ainda balança, e me dizias que a vida é efémera, que devemos aproveitá-la e que tu tinhas aproveitado e querias aproveitar mais ainda a tua. 
A lareira apagou agora. Não me quero levantar e acendê-la de novo. Estou bem aqui deitada. O Doc enroscou-se um pouco mais e suspirou. Ele sente-se sozinho. Como eu o compreendo... É duro vermos partir alguém que tanto amamos, não é Doc? Os olhos dele perderam o brilho. Pergunto-me o que dirão os meus neste momento...
Tu dizias-me que os meus olhos eram os mais bonitos que alguma vez tinhas visto: a cor do mel nos dias de inverno, a cor do sol no verão. Sabias que temos os olhos iguais? 
Tu dizias-me que eu tinha um sorriso doce e meigo, que os meus beijos te deixavam arrepiado. Sabias que os teus tinham o mesmo efeito em mim?
Tu eras o homem perfeito que muitos não souberam preservar nas suas vidas. Sinto muito.
Ninguém da minha turma foi ao teu funeral. Penso que nenhum deles saberia o que dizer. Eu compreendo. Muitos deles adoravam-te. Eras o avô de muitos meninos. 
A mão já começou a falhar, a vista tornou-se novamente turva e sinto o corpo dormente. Custa tanto avô! Tu não merecias, o pai não merecia, a mãe não merecia. Eu não merecia. 
Existe um tempo para tudo. Espero que nunca o haja para te esquecer, para esquecer o teu toque, para esquecer as tuas histórias e ensinamentos. E avô, onde quer que estejas, lembra-te de nunca me esquecer. 
Ah, o pai pediu para te dizer que naquela noite em que o encontraste bêbado junto ao pessegueiro, que ouviu tudo. Que te ouviu dizer que o amavas e que não saberias viver sem ele. Eu lembro-me dessa história. Pediu que te respondesse com as palavras que eu te diria se estivesse bêbada encostada àquele pessegueiro. Eu primeiro disse-lhe que nunca me virias bêbada. Ele sorriu e disse que te tinha dito algo do género uns anos antes. 
Mas avô, se me encontrasses junto a um pessegueiro bêbada e me dissesses que me amavas e que não conseguirias viver sem mim, eu só te diria que sabia o que estavas a sentir. Que sei o que estavas a sentir. Que te amo, que não sei o dia de amanhã e que não faço ideia quando é que vou conseguir levantar-me deste chão e continuar a viver sem ti. Que a vida foi injusta para contigo muitas vezes, mas como tu próprio disseste, em três momentos te presenteou da melhor forma: quando o pai te agarrou o dedo com força de um herói pela primeira vez, quando agarraste a mão da mãe e a tiraste do rio com a força de um guerreiro e quando eu te abracei com a força de um anjo. Dizer-te-ia que a minha vida sem ti não faz sentido. 
Mas acabaria dizendo apenas que também te amo e que não saberia viver sem ti. E nessas palavras tu entenderias tudo, sorririas, pegarias em mim ao colo e deitar-me-ias na cama. Adormecerias na cadeira ao lado e esperarias que eu acordasse e dar-me-ias um sermão. Que eu não iria ouvir, mas iria recordar para sempre. Como daquela vez em subi a uma árvore e rasguei as calças novas. Sabias que o fiz porque me tinhas ensinado que deveríamos salvar os animais em apuros? Estava lá o Tico, o gato da vizinha. Mas quando lá cheguei a cima ele saltou para baixo. Ri-me como uma perdida naquele momento, porque me tinha esforçado tanto para realizar aquela tarefa. Não te rias de mim avô, mas eu achava que ele iria morrer ali em cima se ninguém o salvasse.
Eu tinha 7 anos e não sabia nada da vida. Apenas que te amava e que gostava de estar perto de ti e do Doc. Apenas que queria que fosses eterno. Pedi tantas vezes a Jesus que te fizesse eterno. Tenho pena que tal não tenha acontecido. Muita pena, avô!"

14 comentários:

  1. Lindo :) Identifico-me no último paragrafo, mas eu tinha 12 anos e perdi a minha avó, revoltei-me com Deus, porque é que aquilo tinha de acontecer a mim? Porque é que ele não deixou que a vóvó me visse mulher e ficasse orgulhosa?! Tive uma fase péssima, odiava ter de ir à igreja.

    r: Espero bem que sim, se não me engano, o ano passado não choveu mas também não estava sol.

    ResponderEliminar
  2. Adoro. :)

    R: Eu gostei imenso querida, mas não sei se gostas de livros deste género. :)

    ResponderEliminar
  3. Lindo *.*
    R: Eu vou voltando aos poucos, don't worry <3

    ResponderEliminar
  4. Uau, lindo, tocante, maravilhoso :')


    *Beijinhos*
    Caty<3
    http://myfairytale4.blogspot.pt/

    ResponderEliminar
  5. r: Quem me dera.. É que não consigo mesmo!

    ResponderEliminar
  6. R: Eu queria ler o livro antes de ver o filme mas ando sem vontade nenhuma..

    ResponderEliminar
  7. r: Já se passaram quase 5 anos desde esse episódio por isso agora já estou bem, mas odeio que realizem missas em memória dela, isso lá serve para alguma coisa e só se lembram neste mês :o
    Beijinhos*

    ResponderEliminar
  8. Chorei! Isto não se faz.
    Sabes porquê? Não conheci o meu avô do lado do pai e o meu avô do lado da mãe, enfim...
    Então não tenho memórias destas com eles...
    Mas identifiquei-me com muitos sentimentos e acontecimentos porque passei por eles com a minha avó e o meu padrinho, e ainda passo :'

    ResponderEliminar